Como uma mordida de cachorro pode salvar um time do rebaixamento? Em condições normais de temperatura e pressão, não pode. Mas a pressão estava longe das condições normais para os jogadores do Torquay United em 09 de maio de 1987. A temporada 86-87 estreava mudanças na estrutura do futebol inglês. O último colocado da 4ª divisão seria rebaixado da Football League para a Football Conference, e isso significava deixar o futebol profissional – e ser pioneiro nessa desonra. A League é a liga responsável por 2ª, 3ª e 4ª divisão do futebol inglês, enquanto a Conference, atual National League, por 5ª e 6ª.
Imagine, então, a pressão de ser o antepenúltimo colocado da liga na última rodada, apenas um ponto a frente do lanterna. Para piorar, no último jogo ter que enfrentar o Crewe Alexandra, algumas posições a frente e liderado pelo fenômeno David Platt, que viria a se tornar um dos maiores nomes do futebol inglês na década de 1990. O jogo era em casa, mesmo assim, não era uma tarefa das mais fáceis. Mas nada é tão ruim que não possa piorar.
O jogo

O primeiro tempo multiplicou a – já enorme – pressão sobre o Torquay. Em apenas vinte minutos, o Crewe Alexandra abriu 2 a 0, com direito a gol de Platt. Além disso, o lanterna Burnley vencia seu jogo e o vice-lanterna Tranmere Rovers havia vencido no dia anterior. O Torquay estava sendo rebaixado. Com esse cenário ao intervalo, os torcedores já começavam a aceitar o inevitável. Meio a uma grande maré de azar na temporada e a uma crise financeira, aceitavam, também, o final do clube.
A esperança voltou a dar as caras já aos dois minutos do segundo tempo. O zagueiro Jim McNichol cobrou falta, a bola desviou e foi para o gol. 2 a 1. Com um simples empate, o Torquay ultrapassaria o Lincoln United, que tinha a um ponto a mais e estava perdendo. A pressão foi ressignificada, agora era a pressão do ataque do Torquay em busca do segundo gol. Quanto mais o tempo passava, mais essa pressão aumentava, ao menos foi assim até os 38 minutos.
O cachorro
Com certeza não é fácil a vida de um cão policial em dia de jogo. Tente se pôr na pele – e nos pelos – do pastor alemão Bryn. Você estava com seu amigo humano na beira do campo, nas arquibancadas, quase quatro mil barulhentas pessoas gritavam desesperadas, parte da arquibancada central, inclusive, estava claramente abandonada após um incêndio dois anos antes. No meio daquela confusão, uma bola vem na direção de seu amigo e para perto dele e, depois, um jogador vem correndo a toda velocidade na direção da bola – e do seu amigo. Como você agiria? Bryn reagiu.
Se da perna do McNichol veio o gol que devolveu a esperança, na perna do McNichol chegou a mordida que destroçou qualquer resto de esperança que havia. Os dentes de Bryn abriram três buracos na perna do zagueiro, que levou 17 pontos. O treinador Stuart Morgan já havia feito a única substituição possível e McNihol decidiu continuar em campo. Depois dos quatro minutos de parada por causa da mordida, no quarto e último minuto de acréscimo, em uma bola rifada na área, o atacante Paul Dobson marcou o gol de empate, que manteve o Torquay na Football League.
O pós

Ao fim, o Lincoln United, derrotado pelo Swansea, acabou rebaixado por apenas um gol de diferença no saldo. Se Bryn tinha tudo para virar vilão, virou herói. Para a torcida do Torquay United, o gol só aconteceu por causa dos minutos a mais depois da mordida. O episódio se tornou conhecido como The Great Escape (a grande escapada) e o gol de Dobson é, até hoje, considerado como o mais importante da história do clube.
Ao jornal inglês The Guardian, em 2009, McNichol disse que não sabe se tocou na bola depois da mordida, ficou apenas mancando em volta. Segundo o zagueiro, ele não viu as celebrações, estava tomando vacinas e fazendo exame para tétano. Ele relatou que o médico do clube, Dr. Foster, piadista, alertou para a necessidade de fazer testes para ISTs no cachorro. Na oportunidade, McNichol declarou ter consciência que o ocorrido não é culpa de ninguém e que não guarda mágoas de cães. Bryn morreu anos depois, Harris, seu treinador e amigo protegido em campo, ainda mantém suas cinzas em casa.
Hoje
Depois da grande escapada, o Torquay United, foi promovido ao terceiro nível do futebol inglês em duas oportunidades, 90-91 e 03-04, mas sempre voltando após um ano. O rebaixamento para a Football Conference passou perto em 95-96, mas a equipe foi salva porque o Stevenage Borough, que seria promovido, foi considerado impróprio para a Football League. A mesma sorte não aconteceu em 06-07, quando a equipe foi rebaixada à Conference Premier (5ª divisão do futebol inglês).
O Torquay United voltou à Football League dois anos depois, mas voltou a amargar o rebaixamento na temporada 13-14. Após três temporadas medianas, o Torquay voltou às últimas posições da tabela e viveu mais um rebaixamento. Na temporada 18-19, a equipe está liderando a National League South (uma das sextas divisões).